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Santos, São Paulo, Brazil

segunda-feira, fevereiro 21, 2005

O beijo e o tempo

Domingo de sol, praia e encontro com as amigas e amigos. Muitas conversas e entre elas destaco um dos assuntos preferidos: casamentos/namoros e relacionamentos.

Interrompo minha leitura e discretamente presto atenção, no diálogo ao meu lado. Sem dar bandeira, protegida pelos infalíveis óculos “bem escuros”, como convém ao tomar sol!

Uma delas reclamava sobre as mudanças sofridas pelos relacionamentos com o passar dos tempos.
- Sabe aquele beijão de língua, de tirar o fôlego, deixar as pernas bambas, por exemplo.
No começo é toda hora. Depois o homem só beija direito na hora de “fazer amor”... Desabafa!

No que outra apressadamente complementou:
- Só aqueles selinhos sem graça, com gosto de “chuchu”...
- Meu “homem”, pra me dar um beijão na rua, só se estiver bebum, afinal não fica bem, argumenta ele! ...

Todas suspiram profundamente, tomam mais um gole de cerveja geladinha e decretam: é assim mesmo!
Calaram-se e resolveram colocar o bronzeado em dia! Fazer o que!

Volto novamente meus olhos para a leitura e me vem na mente um poema que tem tudo a ver com o que acabei de ouvir.

Seria uma grande idéia imprimir e distribuir aos incautos, certamente uma utilidade pública!
Então ai vai ...

I
Toma-me. A tua boca de linho sobre a minha boca
Austera. Toma-me agora, antes
Antes que a carnadura se desfaça em sangue, antes
Da morte, amor, da minha morte, toma-me
Crava a tua mão, respira meu sopro, deglute
Em cadência minha escura agonia.

Tempo do corpo este tempo, da fome
Do de dentro. Corpo se conhecendo, lento,
Um sol de diamante alimentando o ventre,
O leite da tua carne, a minha
Fugidia.
E sobre nós este tempo futuro urdindo
Urdindo a grande teia. Sobre nós a vida
A vida se derramando. Cíclica. Escorrendo.

Te descobres vivo sob um jogo novo.
Te ordenas. E eu deliquescida: amor, amor,
Antes do muro, antes da terra, devo
Devo gritar a minha palavra, uma encantada
Ilharga
Na cálida textura de um rochedo. Devo gritar
Digo para mim mesma. Mas ao teu lado me estendo
Imensa. De púrpura. De prata. De delicadeza.(...)
(Hilda Hilst)